Acabo de chegar da academia onde elaborei essa reflexão. Explico-me, na esteira monótona que me leva a lugar nenhum, meu pensamento pode ir mais longe ao ver uma reportagem e suas repercussões imediatas. Eu estava na esteira e na TV, a minha frente, passava o programa “Mais você” com Ana Maria Braga.
A reportagem em questão mostrava que um casal homossexual (ou homoafetivo, como preferirem) foi reconhecido legalmente como pais de uma menina nascida a partir da doação de sêmen de um deles, uma fertilização in vitro, e uma barriga de aluguel (da prima de um deles). A reportagem apresentada como uma grande conquista e novidade, talvez não tivesse previsto a repercussão social que essa noticia implica, ainda que ao menos tenha citado o famoso preconceito.
Imediatamente, enquanto a reportagem ainda estava sendo exibida e depois seguida pela entrevista com o casal, as pessoas ao meu lado (nas outras esteiras) começavam a discutir. Eu como todo psicólogo, não pude me furtar a observar a discussão em voz alta.
Um senhor já idoso falava em alta voz “a sociedade está perdida. Isso é uma vergonha e ele ainda é Palmeirense, ofende o time”. Outra senhora discutia “Isso é coisa do diabo! Não é natural, quem é a mulher? Coitada da criança. Eles [justiça] só autorizam isso porque eles [casal] têm muito dinheiro. E quando essa criança crescer? Como vai explica na escola? Vai sobrar para a professora, como ela vai explicar para as outras crianças que começarem a tirar sarro? E a criança vai dizer o que? Que tem dois pais e nenhuma mãe?”.
Bom esse foi o nível da discussão que ouvi, e evidentemente que o fato de a mulher ter pensado no caso da educação me fez refletir imediatamente. A resposta da pergunta da senhora é muito simples: O que fará a professora? Resposta: Ensinar! Ora, pois a função do professor é ensinar, sobretudo, a professora tem o dever de ensinar as crianças a lidarem com as diferenças. Principalmente para evitar que no futuro existam pessoas como essas que citei que achem que é possível ignorar o direito de as pessoas serem felizes como puderem e como desejarem.
A minha experiência com preparo de pais para a adoção, tanto de casais homosexuais quanto de casais heterossexuais, me levou a diversas reflexões e constatações que me permitem discutir esse assunto aqui. Primeiro eu gostaria de destacar que eu tendo a pensar que o funcionamento cognitivo se dá, essencialmente, por meio de dualismos, isto é, quando pensamos em “dia” vem logo à mente a palavra “noite”. E assim temos os binômios dia-noite, céu-terra, vida-morte, amor-ódio, bem-mal.
Evidentemente que existem gradações como “tarde”, entre dia e noite, mas o funcionamento psíquico parece requerer esses limites como em um código binário, ou é 1 ou é 0. Nesse mesmo sentido, outra pergunta da senhora parece ilustra o que eu quis dizer. Quando ela diz “Quem é a mulher?” é como se por ser um casal, um tem que ser homem e o outro a mulher, como papéis arcaicos em que o homem viril trabalha e a doce mulher cuida das crianças em casa. A resposta à pergunta proposta seria então: ninguém! Como um casal homossexual um é homem e o outro também, ou um é a mulher e a outra também. Essa pergunta reflete um pensamento que tem por base essa formação dualista entre certo e o errado, como se isso existisse.
O senhor também ofereceu uma boa questão quando ele diz “Isso é uma vergonha e ele ainda é Palmeirense, ofende o time”. Pergunto eu: Que time? O time do Palmeiras ou o time dos homens-viris-machos-heterossexuais? Quando ele expõe dessa forma, o que parece refletir é que sua indignação é por participar do mesmo “time”, ser homem, e achar absurdo o comportamento de um semelhante.
Esses pequenos relatos com certeza devem representar o que aconteceu e está acontecendo em muitos outros lugares com diferentes intensidades. E a TV repete apenas o mesmo modelo de discussão “lição de moral” de forma acrítica. Afora as análises, o que quero passar com essa reflexão é que os programas televisivos aquém de exibirem os “bons exemplos de pessoas vitoriosas” deveriam se propor a discutir essas temáticas também de forma crítica.
O que se tem que falar é que realmente não é normal um relacionamento homossexual, não é normal porque o normal, assim como o natural, NÃO existem! Normal é apenas uma convenção social que se modifica ao longo da história e que não serve para muita coisa a não ser excluir uns e privilegiar outros. O que não significa que esses relacionamentos não devam acontecer, que não se possa acontecer, que não se deva respeitar.
Uma breve retrospectiva histórico-crítica nos permite evidenciar que o pensamento se modifica ao longo da história, esse conceito de família papai-mamãe-filhos (a chamada família nuclear) é apenas uma construção social adquirida nos últimos dois séculos e tendo por base um pensamento judaico-cristão.
Agora pensem comigo, como disse a mulher “Isso é coisa do diabo” ou ainda se justifica que não seja coisa de Deus, para mim a máxima é simples, se Deus não quisesse ele não teria inventado ou já teria eliminado. Agora que direito temos os homens e mulheres de julgar nossos semelhantes por escolhas que não afetam nossa própria vida? Eu com base das ciências que é no que acredito, não encontro evidências científicas que me provem que esses relacionamentos sejam uma contravenção. E me recuso, eminentemente, a compactuar com pensamentos arcaicos e preconceituosos. A sociedade se transforma, tudo na vida muda! A única coisa que é natural na vida é a mudança!
Se existem pessoas que preferem acreditar que milhares de crianças devam permanecer até a maioridade dentro de um abrigo, porque não podem ser adotados por casais homossexuais que só querem ter uma vida feliz, eu só posso usar o mesmo crivo social e condenar essas mesmas pessoas e não aqueles que acreditem que todos devam ter a chance de serem felizes! Embora eu continue respeitando a liberdade de pensamento dos outros, também tenho o direito a exprimir meu pensamento e então concordo com Sartre “não há necessidade de grelhas, o inferno são os outros”.
A noticia da qual falei está disponível nesse link: Casal gay teve dupla paternidade reconhecida.