Se você está lendo esse texto, com certeza você consegue ler palavras. Mas você sabia que existem 4 modos de ler palavras e que nós aprendemos essas diferentes maneiras desde crianças? Nós adultos podemos usar todas essas maneiras, mas apenas uma delas é a mais eficaz, quer saber qual? Vou explicar mais adiante.
Uma das mais respeitadas e importantes cientistas no mundo, no que diz respeito à aprendizagem e ensino de linguagem escrita é, sem dúvidas, a Profa. Dra. Linnea C. Ehri da City University of New York (CUNY). Ehri tem feito pesquisas há mais de 40 anos sobre como as pessoas aprendem a ler e a escrever e eu tive a honra de tê-la como coorientadora do meu doutorado. Um dos achados de suas pesquisas foi a identificação de 4 maneiras para se ler palavras escritas, veja a seguir.
Se você ficou curioso e foi atraído pela foto do logo do McDonalds que ilustra esse artigo, você com certeza vai entender o que significa a estratégia de predição para ler palavras escritas.
A predição é uma das primeiras formas de se ler palavras. Quando as crianças são muito pequenas é comum vê-las tentando adivinhar o que está escrito. Elas podem, por exemplo, ver uma figura em um livro e dizer que o que está escrito é a descrição da figura, mesmo quando isso não está correto.
As crianças prestam atenção não aos sons das palavras, mas sim para as pistas visuais, características como cores e formas e tentam descobrir os significados inventando palavras com base nessas pistas visuais.
Uma certa vez eu estava ensinando para uma menina as letras do alfabeto e quando cheguei a letra M ela me disse “Ah é M do nome da minha mãe”. Quando perguntei a ela qual era o nome da sua mãe ela me disse “Marina”, ou seja, ela acertou a letra de sua mãe (também poderia ser M de mãe). No entanto, logo após ela complementou “Também é M de lanche” e quando eu perguntei a ela, por que era M de lanche, ela me disse “Ah eu sempre vejo essa letra quando vou no McDonalds”.
Veja, nesse caso ela associou a letra M símbolo de McDonalds com a palavra “lanche”, não porque exista algum M em lanche, mas sim porquê ela vê essas cores e formas do logo e associa com a comida.
Ehri mostrou em vários estudos que as crianças antes de aprenderem sobre como funciona o alfabeto, usam essa estratégia de predição com base em formas e cores. Em uma de suas pesquisas, ela apresentou para grupos de crianças que sabiam ou não sabiam ler alguns logos que foram modificados de forma que a aparência era a mesma do original, mas a escrita estava errada. Como na figura abaixo em que se vê a palavra XEPSI no logo de PEPSI. Se você estava distraído pode até ter confundido e lido PEPSI, mas já falarei sobre essa leitura automática mais adiante. O que ela observou foi justamente isso, as crianças que não sabiam ler reconheciam as palavras mesmos que estivessem erradas, sem se preocupar com as letras, enquanto aquelas que sabiam ler liam as palavras conforme elas estavam escritas, não de acordo com a marca original.
Um outro exemplo, que pode funcionar para entender esse tipo de leitura por predição é a brasileiríssima e criativa adaptação do logo de Coca Cola para Caldo de Cana como na figura abaixo.
Por fim, como já deu para perceber predizer o que significam as palavras escritas não é uma estratégia tão eficiente, já que na maior parte das vezes nós podemos estar errados. No entanto, é a estratégia mais fácil de ser usada, porque não exige muitos conhecimentos, apenas observar a própria palavra escrita e uma boa imaginação.
Vale lembrar que isso não é uma estratégia que só as crianças usam, nós adultos também podemos usá-las. Imagine se você derrubou um pouco de café sobre o livro que você estava lendo e agora algumas palavras estão impossíveis de serem lidas, ou então se a impressora falhou justamente nas últimas palavras de uma sentença. Peguemos os exemplos abaixo:
No hospital estão muitos médicos e en…
Eu adoro comer bolo de morango, mas não gosto de bolo de cho…
Veja só, aposto que você adivinhou que as palavras que faltam são “enfermeiros” e “chocolate”, e adivinhou isso apenas pelo começo de cada palavra e pelo contexto.
Assim, a predição pode ser usada a partir de ilustrações, contexto ou até mesmo partes das palavras. Mas lembrando que a predição não é uma estratégia segura, e se ao invés de “enfermeiros” a palavra fosse “enfermeiras” ou “enfermos”? É preciso cuidado com as adivinhações, então vamos a próxima estratégia.
Outro jeito de ler palavras é por analogia. Quando falamos em analogia estamos falando em associar coisas que são semelhantes, parecidas. Um alho não tem cabeças e nem dentes, mas dizemos dentes de alhos e cabeça de alho. Podemos ter bico de papagaio nas costas, ou em vasos floridos, ou nos próprios papagaios que são belas aves. Mas que também podem ser pipas ou uma pessoa que fala pelos cotovelos (Essa última analogia é mais difícil de entender).
Ou seja, nós podemos usar analogias em diferentes contextos e para diferentes situações. Podemos dizer, por exemplo, que alguém é um gato ou uma gata, o que nada mais é do que um elogio que significa que a pessoa é bonita, equivalendo o substantivo gato ao adjetivo beleza.
Agora no caso da leitura, fazemos analogia quando pegamos o conhecimento de uma palavra ou de um pedaço de palavra e usamos para ler outra palavra que seja nova.
Nesse caso, a leitura é possibilitada porque o leitor já conhece alguns pedaços da palavra como o começo (ataque) ou o final (rima) da palavra. Esses pedaços que foram aprendidos para uma determinada palavra podem ser utilizados para a leitura de palavras novas.
Ex.1: pedra, pedreira, Pedro, pedregulho, pedraria, apredrejar
Ex.2: João, pão, melão, balão, coração.
Embora essa estratégia seja mais efetiva do que a predição, ela ainda não é a mais eficiente, porque você precisa conhecer pelo menos uma parte das palavras para conseguir lê-las inteiramente.
Talvez o principal e mais importante modo de ler palavras seja a decodificação ou decifração. A princípio essa palavra pode parecer pouco comum, mas decodificar alguma coisa é usar um código para entender o que está obscuro. Imagine que você queira abrir um cofre que protege algum tesouro, é preciso conhecer o código, a senha para abrir certo?
Agora pense nas palavras escritas. Elas também são um cofre, elas também guardam um segredo que só pode ser conhecido por aqueles que sabem ler, que sabem o código da escrita.
Sabe aquele jogo da língua do P, em que se coloca a letra P antes de todas as palavras? Só quem sabe que o segredo é a letra P extra antes de cada palavra que consegue entender porque é que as palavras não fazem muito sentido.
O mesmo acontece com a linguagem de internet, já que vc sabe do que eu to falando, mas qq pessoa talvez não consiga ler, se não souber o que significam essas abreviaturas. Embora a pessoa possa predizer com base no contexto, certo?
Outro exemplo, é aquele jogo de mensagens cifradas ou cartas enigmáticas, nos quais as letras são trocadas por símbolos ou desenhos e para descobrir a mensagem é preciso substituir cada símbolo pela letra apropriada.
Mas o que é que isso tem a ver com ler palavras escritas de verdade? Simples, a escrita nada mais é do que uma forma de codificar as palavras faladas. Quando escrevemos ou lemos, nós utilizamos o código alfabético para isso. Que é o código que dita quais letras que representam quais sons. Então você só pode me entender agora, não porque está me ouvindo, mas sim porque está me lendo, e está lendo as letras que eu usei para registrar os sons das palavras que eu poderia ter falado também.
Vale qualquer letra? Não porque se eu escrever iahuahpkwondubb isso não tem nenhum significado, é preciso seguir um código ortográfico também. O código alfabético dita quais letras que representam quais sons e o código ortográfico quais letras devem ser usadas e de que forma. Por isso a palavra “casa” se escreve com S, embora a pronúncia seja de Z, porquê todas as vezes que existir um S entre vogais ele terá som de Z, se quisermos que ele tenha som de S, teremos que usar SS como em “cassa” (tecido fino) ou Ç como em “caça”. Isso é uma regra, é uma regra de um código.
Então, decodificar permite precisão, porque conseguimos extrair a mensagem correta. O real significado das palavras. Quando você viu os logos de Xepsi e Caldo de Cana, o que te permitiu constatar que não eram Pepsi e Coca Cola foi justamente a habilidade de decodificar. Ou seja, transformar cada letra em seus respectivos sons para recuperar a palavra real.
Todas as crianças que estão aprendendo a ler devem aprender a decodificar. No começo da aprendizagem da leitura é normal que as crianças leiam “B – a- ba – na – na….Ba..nana… Banana”. Isso não significa que a criança lerá assim para sempre, mas sim que ela vai aos poucos automatizando a leitura, como uma criança que começa engatinhando e aos poucos aprende a andar e a correr.
No entanto, mesmo depois de automatizada a leitura, nós ainda continuamos a usar a decodificação para ler palavras novas como, por exemplo, você deverá fazer agora ao tentar ler a palavra “Hipopotomonstrosesquipedaliofobia”, que ironicamente significa “medo de palavras grandes”.
Como você provavelmente não conhecia essa palavra deve ter decodificado as unidades menores como as sílabas para ler, portanto, usando a decodificação. Lembre-se que não é porque você aprendeu a correr que deixou de saber como engatinhar.
O problema da decodificação é que é uma estratégia lenta, porque depende da tradução de todas as letras para que se possa recuperar os significados das palavras. Então ela não pode ser utilizada para sempre como a única estratégia, nós precisamos de um modo mais eficiente para ler mais rápido e melhor.
Esse modo de leitura de palavras é chamado por Ehri de reconhecimento automatizado (sight word reading) ou leitura por memória e recebe esse nome, pois quando as palavras são lidas por decodificação muitas vezes, nós armazenamos na memória as grafias (letras) das palavras associadas aos sons da pronúncia tornando a leitura dessa palavra mais fácil e instantânea.
Esse é o ponto central da teoria de fases do desenvolvimento da leitura e da escrita de Ehri que irei apresentar em outro artigo. Essa automatização da leitura permite que as pessoas se concentrem mais nos significados do que na decodificação, mas como eu acabo de ressaltar no item anterior, a decodificação precede esse reconhecimento automatizado. É preciso que a criança leia várias vezes “B – a- ba – na – na….Ba..nana… Banana”, para que consiga ler “Banana” tão imediatamente quanto você fez agora.
Veja que quando você lê uma palavra por reconhecimento automatizado, você não pode deixar de ler, não tem como ignorar a leitura. Basta olhar a palavra e imediatamente você recupera seus significados. Por isso Ehri, diz que ler palavras dessa maneira não é uma estratégia, pois toda estratégia implica em tomada de consciência, de decisão, e nesse caso é automático, não tem como evitar.
Em inglês, Ehri chama isso de sight word reading, o que seria ao pé da letra leitura de palavras vistas. Porque são as palavras que já vimos e armazenamos em nossa memória, mas também porque sight words é o nome dado as palavras que são reconhecidas imediatamente quando são vistas.
Um bom jeito de se lembrar disso, é que em inglês love at first sight significa “amor a primeira vista”, e é mais ou menos como amor na leitura também. Pense, um amor a primeira vista é aquele que não se pode evitar, da mesma maneira que uma palavra lida por reconhecimento automatizado também não se pode evitar.
Ou seja, essa é a melhor maneira de ler palavras, as pessoas não precisam de esforços para ler quando estão lendo desse modo, e por isso podem desocupar sua memória operacional e compreender textos.
Espero que você tenha gostado dessas explicações em breve irei apresentar a teoria de fases de Ehri e explanar mais sobre essa temática. O que você achou desse artigo, você sabia disso? Não esqueça de comentar, deixar suas perguntas e compartilhar o artigo. Até a próxima.
Ah, você também pode se interessar pelo artigo que fala sobre consciência fonêmica que é uma habilidade muito importante para a aprendizagem e desenvolvimento da leitura. E do artigo em que discuto qual é a idade certa para começar alfabetizar uma criança.