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Eu sei que deveria escrever algo sobre o texto de hoje, mas acho que ele é tão perfeito que fala por si tudo o que eu poderia dizer. Sendo assim, apenas vou fazer alguns breves comentários e ressaltar que Marina Colasanti ganhou o prêmio jabuti com esse texto “Eu sei, mas não devia” que foi publicado no livro de mesmo nome pela editora Rocco (1996). Em minha opinião, a psicologia está presente de diferentes modos nesse texto. É bem verdade que a gente se acostuma com o que nos acontece no nosso dia-a-dia e o coração muitas vezes esfria diante das adversidades da vida, da injustiça, das dores, do sofrimento. Não ligamos mais para o sofrimento dos outros humanos como nós, não porque somos ruins, mas simplesmente porque nos acostumamos com nossa condição e a diferença nos espanta. E muitas vezes nos surpreendemos e criticamos àqueles que de fato se preocupam com esse sofrimento, quando deveríamos nos orgulhar destes.

Às vezes nos acostumamos com um emprego, com um chefe, um relacionamento ou até mesmo um corte de cabelo. Mas será que deveríamos nos acostumar? Talvez isso seja efeito de algum instinto residual, nosso corpo insiste pela preservação, poupar energias, e as mudanças custam muito esforço, mas as mudanças além de bem-vindas são muitas vezes necessárias! Como diria o Steve Jobs, pense diferente! Tente mudar uma coisinha que te incomoda no seu cotidiano, a menor coisa que seja e veja a diferença que isso faz. Ás vezes para encontrar a solução basta olhar para o outro lado. Nos acostumamos tanto a olhar só para um lado, que não conseguimos ver muitas vezes a saída para um problema. Algumas vezes esse é o papel do psicólogo, ajudar a olhar para o outro lado. Enfim, acho que o texto pode ajudar você a pensar um pouco mais sobre o assunto e dar sua opinião também.

Eu sei, mas não devia

Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.