Hoje o dia me proporcionou uma série de eventos e lembranças que, inevitavelmente, me levaram a recordar de um poema do grande Carlos Drummond de Andrade. Mas o que é que a Psicologia tem a ver com a poesia?
Bom, um dos meus objetivos com este blog é mostrar que a Psicologia está além do conhecimento científico estrito e restrito aos psicólogos; a Psicologia é viva, lida com a vida e não é diferente dela, ela faz parte dela. Não é preciso uma formação em Psicologia para conhecer alguns elementos da área… aliás, alguns de nossos conceitos teóricos foram elaborados com base no saber do dia a dia.
Assim como a Psicologia, muitos escritores trazem, em suas obras, mensagens de reflexão sobre aspectos de nossa própria vida. Freud disse: “Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim”, enfatizando como os poetas escolhem caminhos diferentes, mas encontram o mesmo objetivo que a Psicanálise e a Psicologia – em nosso caso.
Esses conhecimentos podem ser intencionais (quando os autores conhecem a Psicologia de fato e a utilizam como um recurso) ou não-intencionais (ocasionais), derivados de conhecimentos de vida.
Seja como for, não há como negar que alguns livros, textos, poemas e até mesmo pequenas frases ou letras de músicas tocam nossos corações de diferentes modos e nos fazem pensar em uma pessoa especial, em um fato de que sentimos saudades ou algo de que não gostamos. Quem nunca se deparou como um poema e de repente se pegou pensando em um momento da vida? Quem nunca chorou escutando uma música? Ou mesmo se identificou com um poeta dizendo “parece que ele me conhece”?
Evidências disso podem ser vistas, por exemplo, nas frases de Clarice Lispector ou outros escritores que, ora ou outra aparecem, em e-mails, posts de Facebook ou Instagram.
Enfim… a seguir, reproduzi o poema Resíduos do grande mestre Carlos Drummond de Andrade. Esse texto foi publicado primeiramente em “A Rosa do Povo”, de 1945. Minha reflexão e análise psicológica estão após o texto, creio que até lá você já deva ter tirado as suas próprias conclusões.
Resíduo
Carlos Drummond de Andrade (1902-2002)
De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço – vazio – de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil…
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver… de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Creio que o poema exprime a necessidade de reconhecer que perdas são inevitáveis, mas nunca totais. Sempre ficamos com a sensação de que perdemos tudo quando um ente querido morreu, um romance terminou, a faculdade acabou, mudamos de casa. Essas experiências dolorosas fazem com que olhemos para o passado com extremo pesar e negativismo, pelo menos em um primeiro momento, como se nada de bom daquilo fosse mais acontecer.
Assim, uma questão importante trazida pela Psicologia é a da transitoriedade: a ordem da vida é a mudança – já dizia uma querida professora minha. E são nessas inevitáveis mudanças que vamos perdendo e ganhando. Mas as perdas não devem ser encaradas como perdas (no sentido de subtração), porque não são na verdade; são ganhos, porque cada momento vivido deve ser encarado como um ganho (um acréscimo).
Ninguém é quem é, se não por um passado que já não existe mais, e é preciso considerar isso. Embora percamos algumas coisas, de tudo sempre fica um pouco, como disse Drummond, do sorriso que mantemos de nossos avós, dos hábitos de família, de quem somos.
É preciso perder um corpo de criança para ganhar um corpo de adulto, é preciso perder a juventude para se ganhar a experiência de vida. O que nos consola também é que, embora daqui a 100 anos, muito provavelmente não estejamos mais aqui, de alguma forma nós passamos por esse mundo e deixamos nossas marcas, sempre fica um pouco da gente naquilo que fazemos. Acho que essas são as mensagens centrais do poema e a contribuição da psicologia. Se nada é eterno, viva o agora.
E você, o que acha?
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Para quem quer conhecer mais sobre o assunto, recomendo os seguintes livros:
BOWLBY, J. Apego e perda: Apego, a natureza do vínculo. vol. 1, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BOWLBY, J. Apego e perda: Separação, angústia e raiva. vol. 2, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BOWLBY, J. Apego e perda: Perda, tristeza e depressão. vol. 3, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998
FRANCO, M.H.P. (Org.). Estudos Avançados sobre o Luto. 1. ed. Campinas: Editora Livro Pleno Ltda, 2002. v. 1. 174 p.