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Renan Sargiani

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Psicologia poética: Resíduos – Carlos Drummond de Andrade

Postado em 6 de janeiro, 2012

Carlos Drummond

Hoje o dia me proporcionou uma série de eventos e lembranças que inevitavelmente me levaram a recordar de um poema do grande Carlos Drummond de Andrade. Você pode até estar se perguntando agora: mas o que é que a Psicologia tem a ver com a poesia? Bom, um dos meus objetivos com este blog é mostrar que a Psicologia está além do conhecimento científico estrito e restrito aos psicólogos; a Psicologia é viva, lida com a vida e não é diferente dela, ela faz parte dessa vida. Não é preciso uma formação em Psicologia para se conhecer alguns elementos de Psicologia também…aliás, alguns de nossos conceitos teóricos foram elaborados com base no saber do dia a dia.

O que eu quero dizer com isso é que muitos escritores trazem muitas mensagens em suas obras que nos fazem refletir e pensar sobre aspectos de nossa própria vida, assim como a Psicologia também o faz. O próprio Freud disse “Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim”, enfatizando como os poetas escolhem caminhos diferentes, mas encontram o mesmo objetivo que a Psicanálise e a Psicologia em nosso caso. Esses conhecimentos podem ser intencionais (quando os autores conhecem a Psicologia de fato e a utilizam como um recurso) ou não-intencionais (ocasionais, espontâneos) derivados de conhecimentos de vida.

Seja como for, não há como negar que algumas letras de músicas, livros, textos, poemas e até mesmo pequenas frases tocam nossos corações de diferentes modos e nos fazem pensar em uma pessoa especial, em um fato de que sentimos saudades ou algo de que não gostamos. Quem nunca se deparou como um poema e de repente se pegou pensando em um momento da vida, nunca chorou escutando uma música, ou se identificou com um poeta dizendo “parece que ele me conhece”? Evidências disso podem ser vistas, por exemplo, nas recorrentes frases de Clarice Lispector ou outros escritores que ora ou outra aparecem em e-mails, Facebook ou Instagram.

Enfim, já falei demais, para variar… a seguir reproduzi o poema Resíduos do grande mestre Carlos Drummond de Andrade. Esse texto foi publicado primeiramente em “A Rosa do Povo”, de 1945. Minha reflexão e análise psicológica? Colocarei após o texto, creio que até lá você já deva ter tirado as suas próprias.

Resíduo Carlos Drummond de Andrade (1902-2002) De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco. Ficou um pouco de luz captada no chapéu. Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco (muito pouco). Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama, do maço ― vazio ―  de cigarros, ficou um pouco. Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio um pouco ficou, um pouco nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana, dragão partido, flor branca, ficou um pouco de ruga na vossa testa, retrato. Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres, um pouco de mim algures? na consoante? no poço? Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros. De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil… De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver… de aspirina. De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória. Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo. Às vezes um botão. Às vezes um rato.

O texto fala por si mesmo, não é? Bom, o que falar então? Creio que o poema exprime a necessidade de reconhecer que perdas são inevitáveis, mas nunca totais. Sempre ficamos com a sensação de que perdemos tudo quando um ente querido morreu, um romance terminou, acabou a faculdade, mudamos de casa. Essas experiências dolorosas e negativas fazem com que olhemos para o passado com extremo pesar e negativismo, pelo menos em um primeiro momento, como se nada de bom daquilo fosse mais acontecer.

Assim, uma questão importante trazida pela Psicologia é a da transitoriedade: a ordem da vida é a mudança – já dizia uma querida professora minha. E são nessas mudanças, que são inevitáveis, que vamos perdendo e ganhando. Mas as perdas não devem ser encaradas como perdas (no sentido de subtração), porque não são na verdade; são ganhos, porque cada momento vivido deve ser encarado como um ganho (um acréscimo). Ninguém é quem é, se não por um passado que já não existe mais, e é preciso considerar isso. Embora percamos algumas coisas, de tudo sempre fica um pouco, como disse Drummond, do sorriso que mantemos de nossos avós, dos hábitos de família, de quem somos.

É preciso perder um corpo de criança para ganhar um corpo de adulto, é preciso perder a juventude para se ganhar a experiência de vida. O que nos consola também é que, embora daqui a 100 anos, muito provavelmente, não estejamos mais aqui, de alguma forma nós passamos por este mundo e deixamos nossas marcas, sempre fica um pouco da gente naquilo que fazemos. Acho que essas são as mensagens centrais do poema e a contribuição da psicologia. Se nada é eterno, viva o agora. E você o que acha? Dê sua opinião, comente!

Para quem quer conhecer mais sobre o assunto, recomendo os seguintes livros:

BOWLBY, J. Apego e perda: Apego, a natureza do vínculo. vol. 1, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BOWLBY, J. Apego e perda: Separação, angústia e raiva. vol. 2, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BOWLBY, J. Apego e perda: Perda, tristeza e depressão. vol. 3, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998

FRANCO, M.H.P. (Org.). Estudos Avançados sobre o Luto. 1. ed. Campinas: Editora Livro Pleno Ltda, 2002. v. 1. 174 p.

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