Escuto com frequência as duas afirmações abaixo:
1. É preciso aprender a ficar bem consigo mesmo antes de estar com os outros, especialmente no campo amoroso das relações.
2. Nascemos sozinhos e morremos sozinhos. Portanto, precisamos aprender a ser sozinhos.
Elas não são verdades. Pelo menos não absolutas. Chocado? Aí vamos: ninguém, absolutamente nenhum humano, desenvolve-se sem cuidados de um outro, os quais incluem cuidados afetivos. Ou seja, pelo menos uma outra pessoa que sinta, deseje ou imagine algo por aquele ser em crescimento. Não existe um bebê humano que sobreviva sem um mínimo de cuidados. Há uma lista de estudiosos sobre o desenvolvimento e sobre o apego que confirmam essa ideia (Bowlby 1969/1990; Winnicott, 1990; Stern,1992; Fordham, 1994; entre outros). As Neurociências, que estudam neurônios-espelho e neurobiologia interpessoal nos bebês humanos, também afirmam isso (Siegel, 1999; e Schore, 1994/2003, por exemplo).
O tema da solidão e da solitude me atraem. Fui fazer um mestrado sobre isso. Perceber-se sozinho e sentir-se sozinho, em alguns momentos-chave da vida, são essenciais para entendermos ou descobrirmos quem somos. Mas isso não tem a ver, necessariamente, com a literaridade do isolamento.
Somente somos em relação. Esta é uma premissa básica da existência. Estar (ou não) em uma relação amorosa é condição que garante o tal esperado “ficar bem consigo mesmo”. É verdade que precisamos estar pelo menos um pouco inteiros em uma relação amorosa para não nos fundirmos totalmente no outro. Mas nossa condição inicial de existência é estar fusionado. Gradativamente, e EM RELAÇÃO, vamos nos descobrindo e descobrindo o outro. Misturando e separando, em um processo contínuo e sem fim. Desde bebês até a nossa morte. As primeiras relações com nossos cuidadores influenciam (mas não determinam necessariamente) como nos relacionaremos com os demais em nossas vidas. Traumas muito intensos na primeira infância atrapalham ou trazem mais sofrimento ao processo de nos tornarmos singularidades autênticas e livres, com menos medo de sermos nós mesmos. Culturas muito rígidas, individualistas e competitivas também complicam o desenrolar sadio da nossa personalidade.
Por outro lado, o medo de se apegar tem tomado conta das pessoas hoje em dia.
É um fenômeno social. Confunde-se o abrir a relação com o abrir-se para o amor, o que pode não ter correspondência alguma. Podemos estar ultrafechados ou abertos, independentemente do modelo de relação. Claramente existem as relações opressoras que dificultam qualquer autenticidade, e os novos formatos têm buscado a libertação de formas tradicionais de opressão, como os casamentos do modelo patriarcal de sociedade. Mas com isso, muitas vezes, esquecemos que o amor envolve algum tipo de entrega. E que esta entrega, ao mesmo tempo em que pode ser perigosa, é também o que nos dá a vida: o que nos conecta, promove sentidos, nos dá continente e oportunidades de estar no mundo em profundidade.
Tudo dependerá da qualidade da relação, da potencialidade que ela tem para sensibilizar e para transformar, para colocar em movimento adequado as engrenagens psíquicas que misturam e separam. É somente por meio das trocas responsivas, quando somos tocados e sentimos que tocamos aos outros, que as experiências fazem sentido e ganham valor. E, sobretudo, aí nos conhecemos. Portanto, não é sobre estar ou não com os outros. Somos seres sociais, nos humanizamos somente por meio da relação com outros significativos e precisamos do afeto para nossa vitalidade emocional. É a qualidade do afeto o que importa. Podemos assumir nosso desejo de amar e de sermos amados. Isso não é fraqueza. É sabedoria.
Referências
Bowlby, J. (1969/1990) Apego e perda: Apego – A natureza do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, vol. 1.
Fordham, M. (1994). A criança como indivíduo. São Paulo: Cultrix.
Schore, A. (1994/2003). Affect Regulation and the Origin of the Self. The Neurobiology of Emotional Development. Routledge, London & New York.
Siegel, D. (1999). The Developing Mind: Toward a Neurobiology of Interpersonal Experience. New York: Guilford Press.
Stern, D. N. (1992). O mundo interpessoal do bebê: uma visão a partir da psicanálise e da psicologia do desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas.
Winnicott, D. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.